Discurso do Ministro dos Assuntos Parlamentares na sessão de encerramento do 5.º Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom), em Braga
Agradeço o convite para participar no Congresso e espero merecê-lo com a apresentação de uma contribuição que se situe no plano de análise, reflexão e debate público que é próprio dos encontros científicos. Proponho-me abordar o tema geral do Congresso – as relações entre comunicação e cidadania – situando-me do ponto de vista da cidadania e dos cidadãos e retendo particularmente os domínios da informação, como função da comunicação social, e do jornalismo, como prática profissional.
Nunca é demais salientar a profunda articulação que existe entre, de um lado, o jornalismo e a imprensa (no sentido geral de informação) e, do outro lado, a democracia política. Em todos os três traços essenciais da democracia se vê, bem nítida, essa articulação.
A democracia é o regime político que respeita, garante, promove a desenvolve os direitos e liberdades – e duas das liberdades principais são as de expressão e informação. A democracia é um conjunto de processos de participação e decisão colectiva, fundados na argumentação e discussão aberta, na livre competição entre opções e na escolha popular – e os media são factor por excelência de informação e conhecimento público e de constituição e dinamismo de esferas públicas. A democracia é um sistema de controlo, limitação e equilíbrio dos poderes, que vive quer da limitação recíproca dos diferentes poderes, quer do escrutínio e da influência social sobre tais poderes – e os media são, também, meios de informação e vigilância e instâncias de produção e expressão das opiniões públicas.
Nada há, pois, a objectar ao lema usado por tantos profissionais e organizações: «sem liberdade de imprensa, não há liberdade». Mas talvez fosse útil acrescentar-lhe outros dois. O primeiro é que, sem liberdade, não há liberdade de imprensa. O segundo é que os meios de comunicação social beneficiam com o teste dos valores e princípios característicos da democracia liberal tanto quanto esta beneficia com o escrutínio dos meios de comunicação social.
Julgo identificar aqui uma das clivagens que organiza o debate sobre a relação entre informação e cidadania. Na perspectiva, digamos de forma suave, mais liberal do que democrática, a liberdade de imprensa é unicamente negativa, deve ser apenas defendida da intervenção externa; porque escrutina, não deve ser escrutinada; porque vigia, não deve ser regulada; porque controla o poder, não é poder, apenas contra-poder; e, como direito, deve ser absoluta, prevalecendo sobre todos os demais.
Ora, a perspectiva democrático-liberal não pode senão aplicar também aos media, à sua organização, funcionamento e efeitos, os mesmos princípios que aplica aos restantes campos e questões públicas. E, por isso, há-de sustentar, no plano dos direitos, que a liberdade de imprensa se deve articular, já se vê que tensamente, com os outros direitos, liberdades e garantias fundamentais – com particular destaque para os chamados direitos de personalidade; que a esfera mediática deve estar sujeita, como as outras esferas públicas, à argumentação e discussão abertas, à liberdade de escolha entre opções conhecidas e debatidas, e à participação cívica; e que, como qualquer outro poder, o poder mediático deve ser conhecido, escrutinado e limitado.
As regras de ouro da democracia liberal – todas as pessoas são titulares de direitos, os direitos são anteriores aos poderes, o governo da lei deve imperar sobre o governo dos homens, todo o poder deve ser limitado, os cidadãos devem poder escolher entre alternativas plurais… – também se aplicam aos media. A afirmação enfática destes princípios em nada pretende diminuir o alcance matricial da liberdade de imprensa: pelo contrário, define-o melhor e com mais sólido fundamento.
2.
A alegação de que não cabe ao escrutinador ser escrutinado não é o único preconceito a afastar de um debate esclarecido sobre a relação entre informação e cidadania. Não menos preocupante é a suposição, que vai fazendo o curso fácil das coisas superficiais, da inelutável marcha do jornalismo profissional e dos órgãos ditos tradicionais de informação para o baú das preciosidades históricas doravante dispensáveis.
Ora, não há desenvolvimento tecnológico ou ditos cidadãos-jornalistas que tornem obsoleto o sistema de princípios, valores, regras e rotinas próprias da imprensa, em sentido amplo, e do jornalismo, como profissão; e, onde as potencialidades abertas por esse desenvolvimento foram exploradas sem ter em conta tal sistema, os resultados foram absolutamente nefastos para a liberdade de expressão, o direito à informação e o espaço público democrático. A procura da objectividade, o cruzamento e a crítica das fontes, o respeito pela palavra e a dignidade dos intervenientes, a isenção e a independência, a pluralidade das ideias, o controlo entre pares, o diálogo com os leitores, etc., continuam a ser condições absolutamente essenciais de uma informação capaz de acrescentar valor à cidadania. E, sempre que levados pela ilusão da instantaneidade e do imediatismo, os velhos ou novos media renunciam a pôr em prática esse seu sistema, rapidamente nos atolamos num pântano onde imperam os rumores, as calúnias têm curso livre e os sujeitos abdicam de procurar a verdade e ler, interpretar e discutir racionalmente o mundo.
3.
Precisamos de media ao mesmo tempo mais humildes, disponíveis para o escrutínio dos cidadãos; e mais ciosos da sua autonomia e diferença própria, menos lestos em ceder ao ar do tempo e sacrificar o conhecimento à emoção ou a informação ao entretenimento. Precisamos, pois, de media mais fortes: mais fortes porque beneficiários da crítica social; mais fortes porque conscientes de que o seu papel de mediadores continuará a ser central, e insubstituível.
Nesta dupla perspectiva, pensar os media a partir do ponto de vista dos cidadãos e da cidadania pode ser bem útil para os próprios media. O exercício é simples: reflectir sobre as exigências que se colocam à informação a partir dos interesses dos cidadãos – não apenas dos consumidores de informação, mas do conjunto dos cidadãos, titulares de direitos e responsabilidades, membros de sociedades civis e comunidades políticas organizadas.
Ninguém pode arrogar-se o papel de oráculo dos cidadãos. Como os profissionais da comunicação social sabem melhor do que ninguém, nós precisamos ao mesmo tempo de procurar e invocar o ponto de vista do conjunto dos cidadãos, o interesse público, e ter bem presente que não há uma maneira uniforme de defini-lo. Feita, pois, esta prevenção, procuremos pensar nas exigências que uma interpelação do lado da cidadania poderia fazer à informação.
4.
A primeira exigência é que pertence aos cidadãos, e não aos jornalistas, a titularidade originária do direito à informação: o direito a informar, a informar-se e a ser informado. A liberdade de imprensa é condição e meio de realização desse direito. Este é um ponto que usualmente reconhecemos, sem problema, no que importa à dimensão de informar-se e ser informado; mas que é igualmente válido quanto ao direito de informar.
Por conseguinte, cabem aos media duas funções complementares. Por um lado, agir em nome do público que deve e quer ser informado, procurando, recolhendo, tratando e divulgando informação. Por outro lado, considerar quantos produzem factos e opiniões e precisam que estes factos e opiniões sejam do conhecimento público.
Como o seu próprio nome indica, os media estão no meio dos processos de informação e comunicação. O acesso aos media põe-se quer do lado dos protagonistas de processos sociais, quer do lado dos consumidores e receptores de informação. E os processos próprios de mediação comunicacional – o acesso às fontes de informação, o cruzamento e tratamento das informações recolhidas, a sua validação, a sua contextualização e interpretação, a sua organização e divulgação – devem desenvolver-se de modo a respeitar os direitos dos actores sociais a informarem, os direitos dos profissionais de informação a informarem-se e informarem e os direitos dos consumidores de informação a informarem-se e serem informados. Sempre que alguns desses direitos são desrespeitados é a natureza aberta, a valia cívica e o alcance democrático do processo de comunicação que fica em causa.
As três exigências matriciais da prática profissional de jornalista são essenciais para a satisfação destes direitos. Falo, em primeiro lugar, da independência dos jornalistas – a liberdade de expressão e criação, o acesso às fontes, e o sigilo profissional, a participação na orientação editorial dos órgãos e a independência profissional. Falo, em segundo lugar, da procura da objectividade, do rigor e da isenção na produção e transmissão de informação. Falo, em terceiro lugar, da diversidade dos temas e abordagens e do pluralismo na expressão de opiniões, como condições sine qua non para que os cidadãos disponham da possibilidade de considerar os vários ângulos possíveis de abordar realidades e comparar visões do mundo, ideologias ou crenças.
Há quem diga que basta a liberdade de empresa para garantir todos estes requisitos e que tudo o que não seja liberdade de empresa os põe em perigo. Peço licença para discordar, mas quero ser preciso no modo como discordo. A liberdade de empresa mediática e a livre concorrência no mercado dos media parece-me ser não apenas uma condição favorável como, mais do que isso, uma condição necessária, sine qua non. Por isso sou a favor da concorrência e contra a concentração, e por isso me recuso aceitar as lógicas de condicionamento industrial no acesso ao mercados radiofónico ou televisivo. Mas, condição necessária, a liberdade de empresa não é condição suficiente. A independência dos órgãos e dos profissionais, a procura da objectividade e da isenção, a diversidade e o pluralismo têm de ser protegidos e promovidos pelas leis e pelas instituições públicas, políticas, administrativas e judiciais. Por isso é que a nossa Constituição consagra direitos das empresas, dos profissionais e dos utentes – sempre a partir do direito fundamental de todos os cidadãos à liberdade de expressão e informação; por isso é que exige a transparência e a não concentração da propriedade dos media, a sua independência não só face ao poder político como também ao poder económico, a existência de um serviço público de rádio e televisão, a independência e a participação dos jornalistas; e por isso é que encarrega diversas entidades de zelar por tais princípios.
5.
A segunda interpelação que a perspectiva da cidadania colocaria à informação ser a compatibilização entre, de um lado, a liberdade de expressão e imprensa e, do outro, os demais direitos fundamentais e, em particular, os direitos de personalidade.
Falo de uma questão crítica e delicada, que só pode ser resolvida em tensão e por sucessivas aproximações. Mas tal não é razão para escondê-la. A liberdade de expressão e informação implica o direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento por qualquer meio, a proibição da censura e o direito de resposta e rectificação, para além, naturalmente, das formas de responsabilidade e reparação associadas. Entre outros, os direitos de personalidade respeitam à identidade civil, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra a discriminação.
Não vejo, na Constituição portuguesa, fundamento bastante para estabelecer qualquer relação de precedência entre estes dois conjuntos de direitos. Vejo-os como direitos de igual valia, que só podem ser limitados em condições verdadeiramente excepcionais, e só as estritamente necessárias para salvaguardar outros direitos ou interesses fundamentais. Justamente, a tensa relação entre, por exemplo, liberdade de expressão e reserva de intimidade ou bom nome e reputação constitui um dos casos em que pode haver lugar a limitações recíprocas: isto é, ceder parcialmente o direito à informação perante o direito à privacidade, ceder parcialmente o direito à privacidade perante o direito à informação.
A lei e a jurisprudência devem ser cuidadosas e prudentes no estabelecimento e aplicação de tais limitações. O ponto, a meu ver, é que, para fazê-lo, temos de aceitar todas as consequências de acreditar nos valores da democracia liberal, e não apenas nas que nos interessem particularmente.
O trabalho de balanceamento nunca está cumprido. Talvez pensássemos que já tinha passado o tempo da luta pela liberdade de expressão contra a invocação de critérios de ordem pública ou conformismo moral; mas ainda hoje é necessário lembrar que a liberdade de expressão só cede perante outros direitos, e não perante ortodoxias doutrinárias ou institucionais. (Convém apenas lembrar que, contrariamente ao que pensam alguns, defender a liberdade de expressão de ideias não significa abdicar da faculdade e até do dever de criticá-las, combatê-las e derrotá-las).
Mas, mesmo no campo das limitações recíprocas dos direitos, o balanceamento é necessário: umas vezes, a favor da liberdade de expressão, reequilibrando tendências para apoucá-la face aos direitos de personalidade; outras vezes, a favor dos direitos de personalidade, reequilibrando tendências para apoucá-los face à liberdade de expressão.
Como falo perante profissionais e cientistas da comunicação, permitam-me sublinhar os quatro pontos seguintes.
Primeiro: não é amigo da liberdade quem pensa que o direito pessoal ao bom nome, à palavra, à imagem ou à intimidade pode ser ignorado ou espezinhado.
Segundo: não é amigo da liberdade de imprensa quem a entende como um direito irrestrito, não escrutinável à luz de outros direitos fundamentais.
Terceiro: não compreende plenamente a liberdade de pensamento e opinião quem quer limitar draconianamente a esfera da informação e da opinião com base em critérios de susceptibilidade. A confrontação da opinião há-de tolerar algum exagero de qualificações ou linguagem e a informação do público sobre matérias relevantes há-de justificar alguma redução da margem de privacidade, designadamente de figuras públicas: a liberdade de expressão é um bem suficientemente precioso para tolerar alguns excessos de adjectivação entre contendores ou alguma perda de privacidade de protagonistas.
Quarto: faz parte da liberdade de expressão – e não de direitos pessoais distintos dela – o direito específico de resposta e rectificação, isto é, o direito de qualquer um, indivíduo ou colectivo, em, como se diz, igualdade de armas, contrapor a sua visão ou versão das coisas àquela que, envolvendo-o, os media produziram. Este direito é distinto do direito à reparação por danos eventualmente sofridos, este é um direito do próprio a exprimir os seus pontos de vista e a informar o público acerca deles. Ele não depende nem pode depender da avaliação dos media em causa sobre a verdade das versões apresentadas; mas também não pode significar o fim da autonomia editorial dos media.
6.
A terceira e última questão que quero destacar, nesta interpelação da informação a partir da cidadania, é a dos termos e alcance da responsabilidade dos media.
Não pretendendo ser exaustivo, identifico quatro dimensões relevantes de responsabilidade social.
A primeira é a transparência. Isto é: o público deve conhecer a propriedade e a direcção dos media, assim como a sua orientação editorial. Pontos que parecem simples, mas que, por exemplo em Portugal, ainda não são totalmente respeitados. Por isso mesmo é que as determinações legais que obrigam à publicitação da propriedade e dos estatutos editoriais são positivas e necessárias. A transparência diz respeito, por um lado, à disponibilização da informação indispensável para se perceber a base económica e empresarial de um órgão ou grupo e, do outro, para se perceber quais são os seus valores e compromissos referenciais.
A segunda dimensão da responsabilidade social é a informação ao público dos processos de produção e divulgação da informação. Não é um jogo de palavras. O valor do que se publica depende da validade dos processos seguidos na selecção dos acontecimentos, no acesso às fontes, na comprovação das fontes, na contextualização e interpretação dos dados e por aí adiante. Os media devem contribuir para que o público tenha algum conhecimento e, portanto, alguma possibilidade de apreciação crítica sobre o modo como se definem agendas, se constroem notícias e comentários e se acolhem opiniões, e como nessas operações se respeitam os princípios de independência, objectividade e pluralismo. Ora isso consegue-se de duas formas complementares: ter cada órgão, no relacionamento com a sua audiência, a preocupação de ir dando a conhecer os critérios e métodos que adopta; e estarem as instituições relevantes, dos media às escolas, implicadas no desenvolvimento de capacidades de leitura e uso crítico dos media, ou seja, implicadas no desenvolvimento da educação para a comunicação social.
A terceira dimensão da responsabilidade coloca os media face aos princípios, valores e normas que regulam a informação livre em sociedades democráticas. Não me refiro tanto aos aspectos legais e judiciais quanto aos aspectos regulatórios em sentido mais estrito, quer dizer, aos que requerem a participação esclarecida e a interacção racional entre os diversos actores do campo mediático e as instituições de regulação, tendo por ambição a construção conjunta de padrões e códigos de conduta adoptáveis livre e conscientemente pelos media. Não ignoro a dificuldade do trabalho, que implica um clima de confiança recíproca, mas parece-me essencial para que melhore o padrão de responsabilidade pública dos media.
Finalmente: a responsabilidade profissional do jornalismo. Os jornalistas têm uma responsabilidade essencial para com a sua profissão, os valores, os códigos e as técnicas e os seus pares profissionais. E essa responsabilidade profissional específica é uma componente crítica e não descartável da responsabilidade social dos órgãos de informação.
Sustentei que há uma afinidade estrutural entre jornalismo e democracia, quer quanto à realização dos direitos humanos, quer quanto ao debate público e às opções informadas, quer quanto ao escrutínio e limitação dos poderes. Também no que importa à responsabilidade social identifico a mesma afinidade. Quando os jornalistas, as direcções e as administrações e proprietários de órgãos de informação praticam (os primeiros) e respeitam (os últimos) os preceitos profissionais, éticos, deontológicos e técnicos, do jornalismo, estão por esse mesmo facto a praticar e respeitar grande parte das suas obrigações perante o conjunto dos cidadãos.
Basta fazer um exercício simples. Por vezes critica-se, com mais ou menos pertinência, os «excessos» da comunicação social. Mas basta uma consulta rápida aos códigos deontológicos dos jornalistas para perceber que a larguíssima maioria de tais excessos deriva do incumprimento flagrante de preceitos profissionais e que o mais eficaz remédio contra eles está no cumprimento de tais preceitos.
A comprovação dos factos, ouvindo as partes com interesses atendíveis; a separação entre notícias e opiniões; a recusa de citar opiniões de fontes anónimas; a denúncia das fontes confidenciais quando estas tentarem usar o jornalista para canalizar informações falsas; a não discriminação por razões de sexo, raça, etnia, credo; a presunção da inocência; a identificação sistemática do jornalista, salvo por razões de incontestável interesse público; a recusa de encenar situações ou forjar depoimentos; o respeito pela intimidade e a dignidade das pessoas – tudo isto faz parte da matriz deontológica do jornalismo e o respeito por tudo isto representa, por si só, o cumprimento de grande parte das responsabilidades que uma cidadania democrática e exigente coloca à informação.
Não ignoro o argumento que alega ser perigoso para a liberdade de imprensa fazer a distinção entre o jornalismo que cumpre as regras básicas da sua profissão e o que as despreza e viola sistematicamente. Não ignoro; mas sustento exactamente o contrário: que se deve defender o jornalismo e denunciar as infracções deontológicas que o degradam. A razão é simples: é que a informação independente, livre, objectiva e pluralista, a informação profissionalmente qualificada, é a melhor amiga da cidadania. Porque é, si mesma, cidadania em acção.